Tetralogia Série de Napóles de Elena Ferrante

Acabei no final do ano passado de ler os quatros livros que compõem a tetratologia da Elena Ferrante, que para quem não sabe é uma escritora italiana cuja identidade é mantida em segredo e se supõe ter formação clássica, ser tradutora e/ou professora e mãe. Eis a minha opinião sobre cada um dos livros e alguns dos conteúdos da história.
A série inicia-se com o primeiro volume, publicado em Portugal pela editora Relógio de Água intitulado "A amiga genial" (2011) em que a narradora Elena Greco, nos informa do desaparecimento súbito da amiga de infância Raffaella Cerullo, mais conhecida por Lina, que cortou a sua cara das fotografias e deixou o filho, Rino, sem saber do seu paradeiro. 
Numa tentativa de reconstruir aquilo que foi uma vida partilhada com Lila e uma amizade conturbada, Elena começa por nos contar a infância em Nápoles, as suas personagens mais simpáticas e sinistras e a personalidade forte de Lila. De uma inteligência brilhante, Lila distingue-se tanto na matemática como na leitura (chega a ser a leitora que mais livros leva para casa de uma biblioteca, pondo-os em seu nome e dos seus familiares), mas deixa os estudos depois da primária para ajudar na sapataria dos pais. Elena, pelo contrário, apesar de também ter parcos recursos económicos (é filha de um porteiro) tem a possibilidade de continuar e aplica uma disciplina férrea para se distinguir como aluna e obter excelentes resultados escolares. Muito deste livro assenta no contraste entre o auto-controle e esforço da narradora para escapar às limitações que o bairro de Nápoles lhe impõe e a impulsividade e carácter muitas vezes manipulatório da amiga Lila, que vive de forma pragmática, sem fazer uso de todas as suas potencialidades. 


No segundo volume "História do novo nome" (2012) acompanhamos as transformações de Lila ao casar-se com Stefano Caracci e como começa a vestir-se como uma senhora e a distinguir-se no bairro. A violência, o submundo do crime e os namoros por conveniência são algumas das intrigas deste segundo livro, que gostei mais do que o primeiro pois nele assistimos ao verdadeiro despontar de Elena como jovem mulher e escritora. Algo de potencialmente fracturante acontece relativamente à sua amizade com Lila: esta envolve-se de forma extra-conjugal com a pessoa por quem Elena está apaixonada desde a infância, Nino Sarratore. A reacção de Elena a este episódio devastador, o seu ingresso na Universidade de Pisa com uma bolsa, o namoro com um rapaz mais velho chamado Franco, a posterior licenciatura e publicação do primeiro livro marcam uma obra recheada de emoções fortes que relata, de forma muito minuciosa e interessante, o crescimento interior e a descoberta de Elena da sua voz, pessoal e literária.



"História de quem vai e de quem fica" (2013) é o terceiro volume da tetralogia e nele assistimos ao desenrolar do casamento de Elena com o intelectual Pietro Airota e ao nascimento das duas filhas, Dede e Elsa. A maternidade é uma experiência longe de ser idílica para Elena que luta para se encontrar a si própria, para vencer o cansaço de lidar com tantas responsabilidades e ser mais do que esposa, doméstica e mãe. A escrita fica relegada para segundo plano e a união com Pietro é destituída de verdadeira paixão. Um dos elementos mais marcantes do livro é o ambiente político que surge como pano de fundo: a luta contra a repressão totalitária e facista e por melhores condições de trabalho. Lila, entretanto separada de Stefano, vive em condições modestas com o filho dele e o companheiro Enzo ao mesmo tempo que trabalha numa fábrica de enchidos. À noite, estuda de forma auto-didacta programação de computadores com Enzo, mostrando mais uma vez a sua extraordinária aptidão e facilidade para dominar qualquer tema a que se dedique. Elena reconhece que se inspirou no conto escrito por Lila em menina, "A fada azul" e que deve, em parte à amiga, a sua carreira florescente de escritora. Nino volta a surge na sua vida e para o impressionar, Elena escreve um ensaio feminista e rapidamente se tornam amantes. Vemos o conflito interior da narradora, que se divide entre os deveres para com a família que construiu e a sua prerrogativa de ser feliz.



No quarto e último volume "História da menina perdida" (2014) Elena deixa o marido para viver com Nino, que vive uma vida dupla, sem deixar a mulher e o filho. Elena e Lila engravidam ao mesmo tempo e estreitam os laços entre elas, dando luz a Immaculata e Tina, respectivamente. Vemos o adensar da criminalidade em Nápoles, com tráfico de droga e assassinatos chocantes e durante um grande terramoto revelam-se mais detalhes de um fenómeno que Lila descreve como desmarginalização, em que todas as coisas à sua volta perdem os contornos precisos e em que ela sente, por momentos inquietantes, uma grande angústia. A relação entre Elena e Nino deteriora-se devido às suas numerosas traições e quando Tina desaparece, a amizade entre Elena e Lila sofre também um grande revés. Elena faz a sua catarse através dos romances que escreve e sente-se satisfeita para poder viajar e absorver cultura. Lila, por seu turno, vive enclausurada na sua dor e nos confins do bairro. Ambas envelhecem à sua maneira e gerem como podem as suas emoções, as vidas desafiantes, os seus desejos e expectativas.




A série de Nápoles de Elena Ferrante marcou-me bastante pela positiva. É um retrato apurado, vivaz e rico de um território e dos seus habitantes, principalmente de duas amigas que mudam ao longo do tempo mas que não esquecem as memórias que as ligam. 
Temas como a ascensão social, a competição entre mulheres (a nível de inteligência e atractividade), os protestos por melhores condições laborais e reformas políticas, o papel do escritor na sociedade e da literatura como forma de ultrapassar condicionalismos vários e como elemento libertador e formador de mentes e espíritos são abordados por Elena Ferrante de forma magistral, numa tetralogia inesquecível.

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