O teu esquivo génio criativo


Na sua palestra do Tedx "O teu esquivo génio criativo", Elizabeth Gilbert começa por dizer "Sou escritora. Escrever livros é a minha profissão mas é mais do que isso claro. É também o meu amor na vida e fascínio. E não espero que isso alguma vez mude".
No entanto, a autora está a recalibrar a relação com o seu trabalho após o sucesso do seu livro de memórias "Comer. Rezar. Amar". Começa por fazer das perguntas que lhe fazem que têm implícito o medo de não conseguir criar um livro que se compare a este. Porém ela revela que sempre foi confrontada com perspectivas negativistas em relação à carreira literária, como o medo de rejeição, fracasso e nunca conseguir que nada de bom saísse dos seus esforços criativos. 
Elizabeth fala que não é lógico ter medo do trabalho que se sente ter sido posto na Terra para fazer e que algo no empreendimento criativo parece suscitar automaticamente a preocupação das pessoas, como os possíveis bloqueios literários. Os escritores têm a reputação de ser mentalmente instáveis, que se foi granjeado ao longo dos séculos e ela alude a este estereótipo, aos suicídios dos escritores ou aqueles que como Norman Mailer se sentiram morrer um bocadinho mais a cada livro que escreveram "De alguma forma internalizamos completamente e aceitamos colectivamente esta noção que criatividade e sofrimento estão de alguma forma inerentemente ligados e que a arte no final irá sempre conduzir à angústia". A escritora diz que não quer contribuir para perpetuar essa ideia e quer encorajar as pessoas a viver. Com quarenta e poucos anos, Gilbert vê-se confrontada com a ideia de que pode já ter vivido o maior sucesso da sua vida "Esse é o tipo de pensamento que pode levar uma pessoa a começar a beber gin às nove em ponto da manhã e não quero fazer isso. Preferia continuar a fazer este trabalho que amo".
Para gerir os riscos emocionais da criatividade e saber como continuar a partir desse ponto, Elizabeth reflectiu, pesquisou na evolução de diferentes sociedades ao longo do tempo e decidiu criar um construto psicológico protector, uma espécie de distância segura entre si e a sua escrita. Desta forma, consegue suavizar a ansiedade em relação às reacções ao seu trabalho.
Elizabeth Gilbert inspirou-se na antiguidade greco-romana para encontrar ideias melhores e mais sãs sobre criatividade. Os antigos gregos e romanos não acreditavam que a criatividade fosse proveniente dos seres humanos. Os gregos chamavam esses espíritos de criatividade que vinham por razões distantes e desconhecidas de daemons, demónios. Sócrates acreditava que tinha um que lhe falava sabedoria à distância. Os romanos chamavam a essa entidade incorpórea de génio, ou seja, o génio não era uma pessoa muito inteligente mas esse espírito que assistia o individuo e o ajudava a criar o seu trabalho.
O artista da Antiguidade estava desta forma protegido, sobretudo da armadilha do narcisismo, em que se o trabalho fosse bom não podia tomar crédito por isso nem se fosse mau seria totalmente sua culpa. Os feitos eram atribuídos ao demónio ou génio que lhes fornecera a matéria-prima.
Depois o pensamento ocidental alterou-se com a entrada no Renascimento, em que o ser humano foi colocado no centro do universo acima de todos os deuses e mistérios, sem lugar para criaturas mistícas que sopravam orientações divinas. O pensamento humanista racional desenvolve-se e em vez de se dizer que a pessoa tem um génio, atribui-se e chama-se de génio à própria pessoa, já que se acreditava que a criatividade vinha inteiramente dele. 
Para Elizabeth Gilbert este é um erro enorme, que tem contribuído para a morte dos artistas nos últimos 500 anos. Permitir que alguém acredite que é o veículo e a fonte de tudo o que é divino é demasiada responsabilidade para por numa psique humana frágil, na sua opinião. Para a escritora, esta percepção distorce egos e cria expectativas difíceis de gerir sobre o nosso desempenho. Afinal, a criatividade é um "eterno mistério", não obedece a racionalismos estritos, é um processo caprichoso e pode muito bem ter um componente paranormal, como se de pó de fadas se tratasse.
Elizabeth Gilbert fala do peculiar processo criativo da poeta norte americana Ruth Stone, que trabalhava nos campos e sentia a aproximação do poema e ia a correr para casa agarrar em lápis e caneta para o anotar, como se transcrevesse palavras ditadas pelo divino. O cantor de jazz Tom Waits também tinha inspiração em alturas inapropriadas como pequenos fragmentos de melodia que lhe entravam na cabeça, por exemplo quando estava a conduzir. Waits também se livrou da carga pesada de poder acreditar que o génio era ele, de forma internalizada e atormentada. Como Elizabeth, prefere acreditar antes numa colaboração bizarra, num tipo de conversa com alguma coisa externa.
Elizabeth descreve o seu próprio processo de trabalho como o de uma mula, feito de uma rotina de suor e trabalho ao acordar à mesma hora todos dias. 
A percepção da inspiração descentralizada de si auxiliou Elizabeth num momento de desespero ao escrever "Comer. Orar. Amar" em que sentiu que possivelmente estaria a escrever o pior livro de sempre. A autora dirigiu as suas preces para uma entidade desconhecida, dizendo que estava a escrever e a cumprir a sua parte do acordo e a pedir que ela aparecesse também.
Há séculos atrás nos desertos do Norte de África as pessoas reuniam-se à luz do luar para danças sagradas que duravam horas até ao amanhecer, num espectáculo magnífico. Muito raramente numa noite em que todos os elementos se alinhavam, um dos dançarinos ficava transcendente, não parecia mais humano, parecia aceso de todos os lados por num fogo divino. Os espectadores sabiam que estavam a ter um vislumbre de Deus e começavam a cantar com as mãos juntas "Alá". Quando os mouros invadiram o sul da Espanha trouxeram essa tradição mas a pronúncia variou com os séculos para "Olé" que ainda se ouve, por exemplo, nas danças de flamengo, assinalando um momento mágico e magnífico.
Recuperar de um intenso momento criativo é descrito como difícil mas segundo Elizabeth se apenas acreditares que foram um empréstimo de uma fonte inimaginável para uma parte da tua vida, tudo pode mudar.
À medida que se prepara para lançar mais um livro estes pensamentos têm ajudado muito Elizabeth Gilbert. Independentemente do que aconteça ela termina dizendo ao público "Olé para ti, de qualquer das formas, apenas por teres o amor humano e a teimosia de continuar a aparecer", isto é, a todos nós por continuarmos a aparecer para trabalhar e cumprir a parte do acordo que nos está destinada.


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