Recortes


Aspiramos na vida à perfeição quer seja na imagem, na carreira, na pessoa que somos e no amor. Não nos contentamos se não for possível ter tudo a que temos direito, se não for para sermos felizes o tempo todo sem limitações, sem períodos negros em que não sabemos o que fazer nem para onde nos dirigir. Não aceitamos facilmente a indefinição das nossas áreas cinzentas, a agonia dos maus momentos e o peso de ter de viver com escolhas ou decisões que pareciam fazer sentido na altura e se revelaram erradas. Diariamente, somos obrigados a lidar com milhões de coisas que não entendemos, com fardos que sobrecarregam os ombros e não nos permitem olhar adiante e ver para além das nossas lutas pessoais.
A insatisfação rodeia-nos, submerge-nos, faz parte de tudo e nunca é totalmente superada porque não somos capazes de nos completar sem desvirtuarmos um pouco a nossa natureza. Para superarmos a separação solitária, temos de nos integrar a modelos, depender dos outros para nos darem um pouco deles e levarem um pouco do que temos em troca. Perdemos focos condutores e nem sempre somamos os benefícios de contar com apoio incondicional e com uma presença que colmate todas as dores, todas as falhas e todos os silêncios. Nem sempre o que mais queremos é tangível e o que se realiza é muitas vezes uma fracção absolutamente inesperada da quase infinitude de sonhos que nos passaram pela cabeça e se desenharam nos nossos corações.
No amor somos tocados por uma força que nos impele para uma consciência superior e nos faz esquecer de que tudo o que ficou inacabado para viver o que se está a escrever nesse instante no nosso caminho, destinado a ser uma entidade perfeita em si mesma, não por durar tanto como queremos ou se desenrolar como num conto de fadas mas por ser uma amostra da realidade, da nossa e do amor que nos foi concedido, da quimera distante que se tornou surpreendemente possível.
Há vários entendimentos do que significa amar e ser felizes. Uma das definições mais exactas da incerteza e turbulência do amor é a comparação do acto de se apaixonar com atirar-se de um precipício sem saber se em baixo vai estar alguém para nos segurar. De facto, nada é tão poderoso e transformador como este sentimento mas de igual modo, nada pode ser tão cruel e devastador como não ser amada pela pessoa que o nosso coração elegeu como sendo a certa. Quanto à felicidade, é irrealista esperar estar num auge de euforia celebratória sem ter um final. A percepção moderna é de que podemos genericamente considerar-nos felizes se formos equilibrados em relação aos sentimentos e à orientação que tomamos. Se o bem-estar é uma escolha que tem de se renovar de forma vitalícia, para o merecermos temos de encontrar a nossa missão, alinhar-nos com os nossos objectivos, numa harmonia serena de sabermos que há muito para alcançar mas que estamos na marcha que nos conduzirá lá.
Dividimos momentos em bons ou maus consoante critérios meramente subjectivos, de juízos de valor, de emoções e sensações. Nada é totalmente uniforme, preto e branco, como separar o trigo do joio. Percebemos muitas vezes o quanto certas perdas nos acrescentam e o quanto alguns ganhos se revelam superficiais e ilusórios porque afinal, não nos trouxeram tudo o que pareciam prometer. Desistimos do amor por falta de paciência, por incapacidade de superar divergências, pelo facilitismo de querer eliminar de forma imediata todos os percalços e quando o outro se torna um problema não pensamos longamente numa solução antes de o eliminarmos também. A nossa cultura é imediata, feita em segundos; em impulsos e não em ponderadas reflexões. A comida é rápida e as relações são igualmente velozes, são descartáveis e não deixam o seu aroma preso à nossa pele antes de a pormos de lado como um enfeite inútil e avançarmos para a injecção de novidade sentimental seguinte. Não tomamos a prespectiva no seu todo, apenas recortamos o que nos interessa e deitamos fora o resto. Mas sobreviver não será isso? Ter uma amnésia deliberada dos sofrimentos quase insuportáveis, seleccionar as maiores alegrias, guardar apenas os triunfos e ignorar tudo o resto? Uma coisa é certa, só conseguimos comunicar eficazmente se para além de falarmos estivermos dipostos a ouvir, se depois de escrevemos nos dermos ao trabalho de ler as respostas. Não podemos esconder-nos detrás de falsas máscaras, inventar desculpas comodistas como alegar que não temos tempo- esta última é quase uma chave mestra: a desculpa que serve para tudo e pode ser usada em praticamente todas as situações. Como uma bailarina em pontas, temos de gerir pulsões incontroláveis, contradições incompreensíveis, caóticas e irrepremíveis que nos fragmentam em mil pedaços diferentes se o consentirmos.
Viver é muitas vezes suportar uma espécie de carnificina emocional, que nos destruíam todos os dias sonhos e esperanças, que nos roubem a inocência e ingenuidade, para que a doçura infantil e incauta seja substituida por uma prudência mais sábia de quem por ver muito, sabe que deve construír muralhas que a protejam para não ser ferida por lanças alheias. Para ter o seu reino mesmo que a derrubam vezes sem conta, não respeitem a sua existência e tentem invadir o seu espaço. 
Por vezes as coisas têm de piorar, de tornar-se mais negras do que a noite mais assustadora da alma para que possam, lentamente mostrar sinais de melhoria. A escuridão revela brechas e estas permitem infiltrar-se os primeiros raios de luz, deixam entrar a alvorada. E a cada dia que nasce, continua a carnificina de absorvermos dos outros para que retirem também de nós, ignorar regras e subverter leis, deturpando limites numa vertigem sempre em movimento, que nos deixa tontos, agitados, com a cabeça a girar como um peão nas mãos de uma criança. É essa a loucura natural do amor que é adrenalina, que é alimento, combustão, que corrompe, que fere e, às vezes, salva.


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