A ignorância dos pensamentos



Uma das ideias contemporâneas mais populares é de que a ignorância traz felicidade. No seu livro “A abadia de Northanger”, Jane Austen escreve “Quem desejar agradar deve mostrar-se sempre ignorante. Apresentar-se com o espírito bem informado é apresentar-se com a incapacidade de agradar à vaidade dos outros, o que uma pessoa sensível deseja sempre evitar. Uma mulher, especialmente, se tem a infelicidade de saber alguma coisa, deve ocultá-lo tanto quando puder”.
Esta preocupação mantém-se, mais do que nunca, actual. De facto, as pessoas ignorantes são mais facilmente moldáveis às vontades dos outros visto que é bem mais cómodo aceitar as opiniões alheias como verdades absolutas em vez de pensar e procurar decidir por si próprio e construir, gradualmente, uma existência com significado.
Desde a Antiguidade que o conhecimento está ligado a actos insurrectos e a punição. Vemos o caso de Adão e Eva que ao comerem a maçã da Árvore da Sabedoria são condenados à doença, sofrimento e morte. De facto, o conhecimento não raras vezes traz conteúdos dolorosos de digerir, uma lucidez existencial, comparável à certeza de que se olharmos directamente para um sol demasiado forte vamos ferir os olhos.
Saber mais implica ter maiores responsabilidades e capacidades, o que pode ameaçar os poderes vigentes. Na Idade Média apenas o obscurantismo e dogmas da Igreja permitiam o controlo absoluto das ideologias e, consequentemente, das pessoas. É com a invenção da imprensa e da circulação cada vez maior de livros que novas formas de pensar se vão difundindo e o acesso a todos os temas, desde o divino ao mais prosaico, se torna possível. O humanismo traz a ideia do Homem ser a medida de todas as coisas, libertando-se dos medos trazidos pela subjugação religiosa para manifestar toda a sua alma, razão e arte.
Pensadores como Rosseau defendiam que a natureza humana era inerentemente boa. Olhando para o mundo actual, há quem argumente que, pelo contrário, a nossa natureza é, no seu cerne, má. Nas palavras de Jimmy Hendrix “Quando o poder do amor vencer o amor pelo poder, aí encontraremos o paz”. É de esperar, então que continuem os problemas globais que se desdobram numa lista quase infindável desde a assemetrias na distribuição de riqueza, à corrupção, violência, terrorismo, massacres, etc
Se o que nos distingue dos outros animais é a racionalidade poder-se-ia pensar que fazemos uso dela para melhorar a vida da espécie humana. Não é o caso. Todos os animais sem excepção matam por um motivo, geralmente por a presa fazer parte da sua cadeia alimentar ou, em na época de acasalamento, as disputas entre os machos pela fêmea podem implicar que só um sobreviva. O Homem, contudo,  é o único ser capaz de matar de forma bárbara e aleatória, apenas pelo prazer de o fazer ou motivado por ideias de superioridade étnica, religiosa, racial ou outras. Os crimes contra a Humanidade são feitos de episódios lamentavelmente longos em que se inclui o  Holocausto, o Genocídio de Ruanda, Bósnia, Somália, Gulag, Uganda, Somália, Sudão, etc. Junta-se à lista negra o tráfico sexual e de órgãos, uma indústria tão chocante quanto rentável.  O tráfico de seres humanos é um negócio que movimenta 12 biliões de dólares, mais lucrativo que a venda ilegal de drogas ou de armas e um dos factores que mais contribui para o aumento do contágio pelo virús da SIDA. O que diz isto de nós e da natureza? Somos meros peões de jogo quando nos recusamos a participar activamente e fazer a nossa voz ser ouvida. “O mundo é perigoso não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa daqueles que vêem e deixam o mal ser feito”, considerou Albert Einstein.
O intervalo de tempo entre o nascimento e a morte, o que escolhemos fazer com a nossa vida, que apenas a nós pertence, é em tudo semelhante a qualquer outra criatura debaixo do sol. Na sua essência, a nossa caminhada é sempre solitária, apesar de todos os passos nos vincularem aos outros seres humanos e nos ligarem em conjunto.
Aquilo que somos exteriormente depende em muito de como tratamos o que está por dentro. Como máquina biológica, todos desejamos uma vida longa, saudável e feliz. Está comprovado cientificamente que as pessoas com melhor qualidade de vida (relações estáveis, grupos de suporte, riso frequente, vocabulário positivo) têm uma esperança média de vida maior de quem vive no espectro oposto. A relação entre organismo físico e psique é um submundo altamente complexo. Funcionamos melhor quando todas as nossas sensações viscerais, complicadas de definir e categorizar, têm alguma ordenação e convergem para um bem maior e um estado de harmonia entre o que sentimos, pensamos e fazemos, diariamente.
Somos constituídos por cargas químicas, como polaridades eléctricas, entre positivo e negativo, que necessitam de ser calibradas na frequência certa. Um pensamento gera reacções físicas próprias e uma comunicação entre neurónios (sinapses). Assim, um pensamento positivo produz substâncias químicas como a dopamina e serotonina, um batimento cardíaco, estável e sensações que associamos com o bem-estar e prazer. Pensamentos negativos causam hiperactividade da amígdala (região cerebral do sistema límbico), sensações de pânico, libertação de cortisol (hormona do stress),batimento cardíaco acelerado, tonturas, dores de cabeça, tristeza e outros sintomas desagradáveis, assinalados pela libertação de substâncias químicas. Por exemplo, a desregulação da noraepinefrina traz perturbações potencialmente graves de humor, cognição, sono e alimentação, etc. Daí que estudos das últimas décadas, apontem para a influência do estado de espírito nos processos corporais, tais como a ciência quântica que se rege pelo principio “pensamentos felizes, moléculas felizes”.
Todos os acontecimentos da vida que categorizamos como bons ou maus, certos ou errados, são apenas e meramente fruto da nosso juízo  e interpretação individual. Se os pensamentos negativos são contraproducentes, destrutivos ou dolorosos porque continuamos a tê-los? É como ouvir continuamente uma música que detestamos apenas porque memorizámos a letra e dá-nos em sentido de familiariedade tão reconfortante quanto distorcido. Ao permitirmos a propagação de padrões de comportamento, deixamos que estes nos roubem a energia, ânimo e motivação e se transformem em sofrimento por antecipação, saboragem e no final, auto-profecias. Tornamo-nos, em suma, parte do problema quando deveriamos estar a trabalhar para a sua resolução.
É fácil ter uma atitude determinista e encarar esta forma de ser como um dado adquirido e incontrolável, independentemente da nossa vontade. Torna-se cómodo seguir quase automaticamente circuitos cerebrais de pensamentos estabelecidos e reforçados ao longo dos anos, apesar de não contribuírem para nada, do que criar novos, de resultados imprevisíveis. Podemos ser seguidores resignados ou desbravadores intrépidos, como bandeirantes, a escolha é nossa.
Esquecemos que com algum esforço é sempre possível alterar aspectos a nosso favor porque felizmente não somos uma estrutura fixa e imutável mas sim feita de plasticidade e  de mudança. Ao alimentarmos a negatividade nos pensamentos, esquecemos a nossa ignorância inicial e transversal a toda a nossa vida. Tomamos como certezas absolutas as nossas crenças irracionais e enviesadas de que a vida não vai melhorar e de que nada tem valor. Conseguimos o feito de encandear uma espiral descendente que tal, como um apagão, cria cada vez mais pensamentos piores até nos deixar interiormente às escuras. Em constaste, pensamentos optimistas são ideias, convicções que como um sopro doce, acendem a nossa força interior como uma centelha, e nos tornam capazes de superar sobre tas adversidades e elevam rumo a um prisma superior.
Como pessoas esclarecidas e dignas, é um acto de sabedoria e humildade estarmos mentalmente abertos a todas as possibilidades. Enquanto respiramos temos direitos inalienáveis e a capacidade de encontrar um bem que nunca nos possa ser retirado. Vale a pena conhecer mesmo que mais ninguém saiba porque a verdade liberta, transforma-nos em esculturas polidas e construídas pelas próprias mãos e não pelas ideias dominantes na sociedade. O jogo pode ser ganho e não há maior vitória do que mudarmos a nós mesmos e ao fazer isso,  mudar um pouco o mundo. Os nossos olhos podem estar abertos mesmo que os outros permaneçam no escuro e o nosso espírito ser chama mesmo muito depois de os outros terem apagado. Podemos ter quietude mesmo que à nossa volta tudo desabe, expluda, revolva e arda. Teremos  paz de fazer o melhor que podemos com as potencialidades e limitações e aproveitar todas as falhas para deixar entrar a iluminação do altruísmo, do amor estonteante, do perdão, da entrega e do entendimento compassivo. É isso que nos faz reluzir felizes em instantes breves de preciosidade e cada uma das nossas facetas, sem excepção, constitui esse brilho vital único e verdadeiro.


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