Interpretar o 11 de Setembro



Na sua obra “Writing the war on terrorism: Language, politics and counter- terrorism”, Richard Jackson faz uma análise muito pertinente sobre o modo como os eventos trágicos de 11 de Setembro de 2001 foram interpretados.
O autor começa por dizer que os factos não falam por si próprios mas foram alvos de leituras particulares por parte das entidades oficiais. Dois aviões que colidem no World Trade Center, duas torres que são símbolos chave da economia americana, provocaram uma onda de choque a nível mundial. Parece não haver palavras para descrever os acontecimentos, há um vazio de significado perante o horror visceral que se faz sentir. A forte emotividade traz consigo um sentimento de caos, de ansiedade epistémica e de hiper-realidade, um esbatimento das fronteiras cinematográficas com um ataque terrorista opulento, quase surreal. Imagens extremamente perturbadoras como de pessoas a saltarem dos torres são vistas vezes sem conta, numa expressão crucial do desespero destes novos mártires.




A administração Bush vai construir uma interpretação narrativa com efeitos políticos, culturais e militares, que vai desaguar inevitavelmente na “Guerra ao terror”. Nas reacções iniciais de Bush estão presentes expressões de consternação, luto, sofrimento, daquele que foi o ataque mais letal por terroristas internacionais em solo americano. O presidente falou em “tragédia nacional”, na perda de vidas humanas (2.998 pessoas) e na ferida que estas acções tinham aberto na nação. Os detalhes personalizados das vítimas do 11 de Setembro serve como uma espécie de catarse colectiva, que une os americanos na tristeza, exaltando a coragem e qualidades dos civis inocentes que pereceram. É enfatizada a necessidade de recordar para sempre a data terrível, inserida no estatuto icónico da América como vítima excepcional, uma nação única em que diferentes grupos, credos e raças co-habitam pacificamente. Reforça-se assim o mito da América como a “Nação escolhida por Deus”, a eleita pela natureza.
Uma das interpretações alternativas para o atentado seria de crime contra a humanidade, que poderia ser relacionado aos massacres no Ruanda, na Chechénia ou antiga Jugoslávia. Em vez disso, realidades globais funestas são deliberadamente omitidas para se categorizar o 11 de Setembro como a um novo tipo de conflito não convencional, assente em actos de terror. Bush afirma que foi declarada guerra aos Estados Unidos, pelo que as vítimas do atentado são também baixas de guerra.



O discurso político adoptado apoia-se em quatro meta-narrativas muito populares na história americana: a II Guerra Mundial (com a analogia a Pearl Harbor), a Guerra Fria, a luta da civilização contra a barbárie e a narrativa da globalização. Estas são estratégias para explicar o presente através de eventos familiares da memória americana. A analogia com o Pearl Harbor justifica-se por no ataque de 7 de Dezembro de 1941 se identificarem ideologias criminosas: o fascismo, totalitarismo e nazismo que desencadearam o conflito e fundamentavam numa vontade de poder e domínio ilimitado. A retaliação da administração de Roosevelt decidiu a vitória dos Aliados, com os Estados Unidos a assumirem um papel de nação salvadora da Humanidade. Na Guerra Fria, estava em jogo um inimigo que os EUA consideravam ameaçador à liberdade, democracia, valores e modos de vida americano; que iria trazer a aniquilação global. Duas super potências mundiais, EUA e União Soviética se defrontaram, com a queda do muro de Berlim a consumar o fim das pretensões comunistas.
O mito da civilização contra a barbárie tem uma longa história nas Relações Internacionais e apoiam-se na tese do choque de civilizações, com os terroristas a serem apelidados de novos-bárbaros. A civilização ocidental é exaltada como símbolo do progresso, da iluminação e do bem.
Os terroristas são retratados como selvagens, cruéis, impiedosos, quase que desumanizados. Esta crença na superioridade natural da civilização esteve na base de todo o pensamento colonial. Por último, o 11 de Setembro é referido como um ataque à globalização e à economia mundial, aos progressos trazidos pela interactividade, pela abertura dos mercados e avanços da sociedade americana a beneficiar o resto do mundo.
Esta perspectiva, que apresenta os EUA como defensor da liberdade humana, do modernismo, prosperidade e expansão da economia mundial não contempla as regiões negligenciadas pela globalização, de onde os terroristas são provenientes.
Bush sistematiza as razões dos atentados em ódio contra as liberdades americanas: de religião, voto, de fala, de reunir e discordar uns dos outros “Eles odeiam o que vemos aqui nesta câmara, um governo democraticamente eleito”. A explicação da tragédia é feita com base no carácter dos terroristas e os seus verdadeiros motivos desconstruídos, de modo a negar uma voz aos elementos da Al Quaeda.




O 11 de Setembro foi, pelo contrário, um acto de terrorismo com finalidades políticas, a de por em causa a política externa americana: a intervenção militar na Arábia Saudita e no Egipto, a participação no processo de paz do Médio Oriente, com a defesa incondicional de Israel face à Palestina. O World Trade Center e o Pentágono eram representações do poder militar e económico dos EUA, cuja destruição ia garantir a atenção de todo o mundo para a facção terrorista e suas pretensões. Contudo, a administração Bush conferiu aos ataques todo um novo significado e reduziu os seus agentes a figuras esteriotipadas e uni-dimensionais. O ataque, ao ser interpretado num discurso bélico, incita os americanos a procurarem justiça, heroísmo e a auto-defenderem-se. A estratégia de contra-ataque iria contemplar de invasões preventivas de outros países, assassínios chocantes e actos de tortura, numa campanha militar de enormes contornos. Iraque, Irão e Coreia do Norte são sinalizados como “Eixo do Mal”, inimigos à paz e segurança mundiais.
A interpretação do 11 de Setembro foi portanto mais baseada na emotividade que na intelectualidade, na categorização rápida e construção de identidades e finalidades numa compreensão pelicular de eventos que mudaram o mundo. Pode-se considerar este dia como um divisor de águas, história quase instantânea que continua a ser actualidade, uma fonte de angústia, de derrame de sangue inocente, de batalha, temor, daquilo que o termo “terrorismo” engloba por excelência.
A inauguração do Ground Zero (nome que também designa o ponto de detonação da bomba atómica de Hiroshima) no local em que estavam anteriormente as Torres Gémeas, veio trazer algum conforto de Nova Iorque. O memorial das vítimas do 11 de Setembro parece evocar para além da dor pelos que partiram, o ressurgimento de uma América das cinzas, uma nação que foi atacada no seu coração mas de forma alguma destruída nas suas profundas raízes.


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