Ela

Ela tinha sido educada para ser perfeita. Tocar piano, falar francês, ter boas maneiras, ser obediente, comer tudo o que estava no prato, nunca perder a paciência ou levantar a voz.
Ela tinha sido educada para ter uma ética de trabalho de soldado, correr todas as manhãs no parque para manter a forma física. Se um cabelo estava fora do sítio tinha um ataque de nervos.
Ela tinha sido educada para se silenciar, para ser contida, para não albergar emoções fortes, para nunca discordar de ninguém, para saber qual era o seu lugar, para se contentar com o pouco que pudesse receber. Com as migalhas, as sobras dos outros.
Ela tinha sido educada para não ser ela mesma e isso não era verdadeira educação. Carregava a cruz de não se poder expressar, de não poder revelar nenhuma verdade inconveniente, de apenas ser vista e não ser ouvida. Sentia-se como numa montra de loja.
Tinha sido educada para pensar em suprir as necessidades dos outros e satisfazer os desejos deles, esquecendo os seus. Nunca ninguém lhe perguntou: Quem és tu? O que sonhas para a tua vida? Quais são as tuas prioridades? Nunca ninguém lhe deu um peixe, muito menos ensinou a pescar.  
Sangue, suor e lágrimas confundiam-se nos olhos dela quando executava maquinalmente todas as tarefas inerentes ao seu quotidiano. O amor estava fechado num frasco, guardado num congelador porque doía demasiado.
Quantas mulheres espalhadas pelo mundo foram e são ela? Incapazes de pensarem em si mesmas e no que realmente querem, a viverem como satélites de outrem quando cada uma de nós é um planeta em si mesma. Dobrando angústias como roupa, cozinhando aspirações ao mesmo que se põe a panela em lume brando, varrendo ofensas com as vassouras gastas. 
Somos mais que mães, filhas, esposas, amigas, irmãs, donas de casa ou profissionais. Somos um reflexo de tudo o que é harmonioso, belo e perfeito, uma janela para o sagrado. É tempo de sermos vistas como tal.

Foto retirada do site Unsplash
Fotógrafo: Dharma Saputra

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