Partes de nós

Ninguém quer sentir a solidão, vazio, incompreensão ou rejeição. Todos gostam de se sentir valorizados e que pertencem a uma entidade coesa que lhes dá sentido, seja uma família feliz, um grupo de amigos ou uma pessoa especial. A cada uma das pessoas que realmente importam na nossa vida damos uma parte de nós frágil e irrepetível que se pode ficar danificada a qualquer momento. Uma palavra mais dura, um olhar reprovador, um momento em que esperávamos algo que não feito e nos deixou a remoer para o tecto todo o nosso desconsolo. Apesar de na teoria ser bonito ninguém quer sentir que dá muito mais daquilo que recebe, todos vivemos consoante um desígnio que vislumbramos inerente aos nossos esforços quer seja trabalhar, estudar ou passar umas horas com outro ser humano. Há dias em que acordar, levantar da cama e executar a meia dúzia de tarefas de preparação para um novo dia tem um sabor amargo. De dúvida e de anseios indescritíveis a raiar o metafísico.
Magoar é mais fácil do que consertar o que foi deixado para trás e é justamente o que muitas vezes não queremos analisar e ter presente na lembrança. Culpa ou vergonha são palavras que despoletam fobias hoje em dia-a-dia e que procuramos eliminar da consciência mais depressa do que ligamos o computador.
Não há nada como ser natural em tudo o que se faz, não ser uma versão ou cópia de ninguém, sermos nós porque muitos sabem a arte da imitação mas poucos sabem a arte despojada e virtuosa da autenticidade: de  se assumirem como o que são, deixando de lado a amalgama de ideias pré-concebidas do que deveria ser a vida consoante o tique-taque do relógio do tempo. Do que os outros nos dizem que deveria ser a nossa vida aos 10 anos, aos 20, aos 30 e assim sucessivamente.
O amor pode ser como um bálsamo que atenua as nossas incertezas e tristezas, como um oásis no meio de um deserto tão árido em que caminhamos um dia após o outro, de pés cansados e coração nas mãos. Mas, como diz uma bela canção dos Ornatos Violeta, o amor é também é uma doença quando julgamos ver nele a nossa cura. Fecha portas em vez de abrir quando pensamos que nos vai salvar dos nossos medos para sempre, que os dragões vão ser vencidos, os monstros adormecidos e teremos um reino encantado e incólume para governar. Não é assim. Ás vezes abre fossos, faz brotar larva do chão, traz alienação em vez de pertença, arrependimento em vez de bênção e ilusão disfarçada de realidade. No instante em desviamos o olhar e não cuidamos do nosso castelo, as muralhas desmoronaram-se estrondosamente.
Todos aqueles que conhecem o sabor das lágrimas dos amores mal resolvidos, juram não voltar a passar pela mesma experiência espinhosa. Afinal, deixamos a meninice para nos tornarmos pessoas crescidas e as pessoas crescidas não devem chorar por leite derramado ou por pessoas que não estão sintonizadas na mesma frequência anímica que nós, certo? Errado. E o maior desafio é não deixar que a certeza do sofrimento nos impeça de amar mais, que a acumulação das obrigações nos impeça de aproveitar quando nos podemos dar ao luxo de não fazer nada ou entregar-nos a brincadeiras tontas como crianças incipientes e ingénuas. O desafio é ser capaz de não nos auto-torturarmos com o que está fora do nosso controlo, de mudar de um passo rápido para um mais lento se for preciso. E no final, saber que podemos esquecer qualquer coisa e qualquer pessoa ao longo dos dias. Só não podemos esquecermos de nós mesmos porque se o fizermos uma parte fundamental do jogo estará em falta.

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