A noite escura da alma
Designa-se por noite escura da alma a experiência mística, anterior à iluminação, em que há um obscurecimento da consciência, num período de escuridão interior e sofrimento. Desde a mitologia clássica que a noite se reveste de simbolismo. Na tradição grega, a Noite é a filha do Deus Caos e personifica o vazio primordial antes de serem criados os elementos do mundo. Na tradição judaica, a noite tem pontos negativos e positivos. Por um lado, há uma separação bem delimitada no Génesis assim que Deus cria a luz e a classifica como boa, diametralmente oposta à escuridão precedente, de plano inferior. No imaginário teológico, a noite está ligada com a divindade: a face de Deus não pode ser vista, habita nas trevas. O ser humano acredita que foi feito à sua imagem e semelhança e como tal, procura compreendê-lo a partir de características como bondade, misericórdia, magnificência, etc. Define-o como uma inteligência suprema, a consciência superior do Universo e fonte de todas as formas de vida. A noite tem um significado de adoração religiosa: é nela que se compõem canções de louvor e se sente inspiração divina e poética: é no silêncio e letargia nocturnas que os sentimentos mais fortes sobem à superfície e se procura o calor das convicções, das outras pessoas e da fé. A nível psíquico, reflecte o reino do inconsciente: a intuição, os desejos reprimidos e os conhecimentos mais significativos. Um dos símbolos da noite é a coruja, ave nocturna que representa a sabedoria, a filosofia e a clarividência. Os místicos alemães do século XIV chamaram de noite escura da alma ao estado de submissão, entrega, despojamento do ego e posse de Deus, através da contemplação e imersão espiritual, para além de todo o ser e de todo o saber. Dois séculos mais tarde, São João da Cruz (1542-1591), monge carmelita, dedicou à sua vida à busca do absoluto e de perfeição espiritual.No seu belíssimo poema “Noite escura”, São João da Cruz descreve uma fé incandescente, a sensação de sair de si por não estar mais preso pelos condicionantes inferiores da existência “Oh, noite que me guiaste! Oh, noite mais amável que a alvorada! Oh, noite que juntaste Amado com amada, Amada já no Amado transformada” O poema retrata a ascensão até à dimensão mais sagrada, da passagem das inquietações e provações até a uma divindade onde se encontra repouso, que supera tudo e, que de alguma forma, a alma já conhecia. Ao fundir-se com a luz, torna-se uma parte ínfima dela e deixa de existir como pessoa indivualizada para emergir num todo sagrado, afasta as trevas e retornar à origem com o sopro de Deus. Nos versos retrata-se a união divina do amor; de um plano pequeno para a imensidão, do individual para universal, do terreno para o cósmico. Na Bíblia são inúmeras as histórias de santos a serem alvo de provações antes de chegarem à iluminação. No caso de Jesus Cristo, a sua noite escura inicia-se antes de ser preso e culmina com a crucificação em que este se sente completamente abandonado. Só a lancinante dor física e mental desta experiência permite a sua ressurreição, milagre que está na base da religião cristã.
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