In memorian

Numa ilha onde tanto faz um calor abrasador num dia como um tempo coberto de uma deprimente névoa e chuviscos no dia seguinte (consequência provável do aquecimento global terrestre das últimas décadas) é quase inevitável não olharmos para trás, com alguma tristeza, nostalgia e saudade por aquilo que perdemos. E na primeira metade deste ano de 2010, Portugal perdeu dois cidadãos de vulto. Falo de Horácio Roque e José Saramago, seres humanos que pelo contributo excepcional que deram ao país e o mundo, merecem uma sincera homenagem e reflexão neste espaço.
Horácio Roque nasceu a 12 de Abril de 1944 em Oleiros e faleceu a 19 de Maio de 2010 em Lisboa, no Hospital de São José, aonde se encontrava internado nos cuidados intensivos após ter sofrido um acidente vascular cerebral. Proveniente de uma família de origens humildes, partiu para Angola aos 14 anos de idade onde começou de imediato a trabalhar e a desenvolver um espírito dinâmico, visionário e empreendedor, que seria a sua imagem de marca durante toda a sua vida. Aos 18 anos fundou a sua primeira empresa. Após regressar de África, fixa residência na Madeira continuando a investir em negócios variados. Era conhecido pelo seu carácter afável e por ser um trabalhador incansável, um exemplo perfeito de um "self made man", um português que partiu de baixo para acabar no topo da sociedade, com fortuna, estatuto e respeito. A sua morte lembra-nos que a vida é efémera e o maior valor de todos é a saúde. Sem ela, o dinheiro acumulado no banco de nada nos servirá para sermos felizes nesta terra.

José Saramago (nascido a 16 de Novembro de 1922 e falecido a 18 de Junho de 2010) é sobejamente conhecido de todos os portugueses, tendo o seu percurso biográfico sido bem recordado após a sua morte recente. Escritor tão controverso quanto crítico, lucídio e eloquente, Saramago afirmou-se como uma das vozes mais únicas e poderosas na literatura mundial. Desde as suas origens rurais a trabalhos vários como serralheiro mecânico, tradutor ou editor de jornal, o seu auto-didactismo exímio e afinada análise crítica, iriam produzir uma panóplia de livros que culminariam com a distinção máxima, o Prémio Nobel da Literatura em 1998. José Saramago nunca recuou perante as polémicas, defendia até ao fim as suas opiniões e a liberdade imaginativa ao mesmo tempo que a sua capacidade filosófica se diluía na sua obra, translúcida e admirável. "O Evangelho segundo Jesus Cristo" (1991) foi talvez um pau de dois bicos que lhe iria granjear tensões com a Igreja Católica, ao propor a relação amorosa entre Jesus Cristo e Maria Madalena e motivá-lo a fixar residência em Lanzarote, nas ilhas Canárias. Doze anos mais tarde, Dan Brown iria defender o mesmo em "O Código Da Vinci" e, para além das represálias não terem sido nem de longe nem de perto tão significativas, o sucesso de vendas foi estrondoso. Então porque condenar um livro que é apenas um texto? O seu autor, ateu convicto afirmou que via a Bíblia como algo não factual, apenas como uma história. Vivendo num país onde há liberdade de expressão civil, política e artística, o escritor tem o direito de contar a sua história, tal como deseja.
Estes são dois exemplos de portugueses que demonstraram coragem, força de vontade, as qualidades camonianas de arte e engenho. Depois da triste partida, fica um legado para recordar. No primeiro caso, uma estrutura financeira para continuar. No segundo, muitos livros aliciantes para descobrir. Um mundo inteiro à espera.

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